22/10/2021

Vida de agente de viagens

         Havia poucos meses que tinha atendido convite do Abrahão para assumir a Diretoria Executiva da Associação Brasileira das Agências de Viagens, seção RGS, instituição que ele era Presidente.  Proposta tentadora, pois a diretoria corporativa da instituição tinha criado o cargo pensando em me contratar. O Abrahão, empresário agente de viagens, muito conhecido por enxergar o mundo de maneira diferenciada, um sujeito adiante do seu tempo, que acreditava em gestão moderna, livre, aberta, fez o convite pessoalmente, no mesmo dia em que eu me demiti do cargo de Diretor Técnico da empresa pública de turismo, EPATUR, e do Conselho Municipal de Turismo, órgão que eu presidia, alçado àquele posto em processo eleitoral.

Recentemente, eu tinha completado trinta e dois anos de idade, estava em excepcional fase profissional, onde tudo que fazia dava certo e, quase sempre, virava notícia. O desafio da ABAVRS era grande e ambicioso. Aquela diretoria aspirava um salto de qualidade para sua instituição, que incluía uma sede ampla, no centro histórico, para facilitar a vida do associado, incluindo centro de treinamento, formação, profissionalização. Um cartão de visitas capaz de impor respeito.

Assumi com pompas e honras, com direito à apresentação numa festa de final de ano que anunciaria o início de um ano novo, como uma nova era para a ABAVRS, um novo patamar para os agentes de viagens.  Muita responsabilidade. Estava feliz, um gigantesco desafio diante de mim, bom salário, excelentes condições de trabalho, apoio total da diretoria e conselho, gente de qualidade e, absolutamente, séria. Algumas destas pessoas, verdadeiras lendas da atividade turística no mundo, estavam disponíveis para me ajudar, diuturnamente, respeitando minhas convicções ideológicas, na maioria das vezes, diferentes das deles. Era como receber salário para cursar um doutorado, recheado de mestres que transbordavam sabedoria e experiência. E ainda recebia tratamento de garoto prodígio. Fui muito feliz ali. Passados trinta anos, este tempo foi um dos que mais gosto. Construí amizades profundas, e consolidei outras, das quais tenho imenso orgulho e satisfação.

Bem, meses depois, compramos a sede. Quase um andar inteiro do histórico Edifício Delapieve, no Centro. Em frente ao Mercado Público e ao prédio da Prefeitura, com uma vista eterna para o Rio Guaíba e para o principal cartão postal da cidade: seu extraordinário e belo pôr-do-sol. O Abrahão, o Waldir e a Deise, apresentaram a minha sala, no melhor lugar da sede. Eu trabalhava como um cavalo na fazenda, feliz, satisfeito e orgulhoso. A inauguração da sede trouxe tanta gente que tivemos medo de faltar quitutes e espumantes.

Na primeira semana de trabalho, no entanto, tivemos o grande acontecimento que quase nos levou da Glória à Tragédia. Num dia resolvi não sair para o almoço. O secretário Jesus e o assistente Valmor, foram para o restaurante e prometeram trazer meu lanche. Zelosos, tomaram o cuidado de chavear a pesada porta de ferro. Ora, o prédio abrigou, nos seus áureos tempos, uma das maiores corretoras de valores do país e, por isso suas salas eram fechadas com pesadas portas de ferro. Fechado em minha sala, com ar-condicionado e rádio ligados, eu estava isolado. Mas, num determinado momento ouvia um burburinho como se estivesse num estádio de futebol. O burburinho foi aumentando e, logo, ouvia sons de sirene e apitos, como se fossem bombeiros. Peraí! Bombeiros? Corri para a janela e pude notar uma enorme massa de gente lotando o Largo Glênio Perez, diante do prédio. Abrindo a janela, ouvi grande parte daquele massa de gente a gritar: Fogo! Fogo! Fogo! Olhei para cima, de onde caiam vidros e saia uma fumaça preta assustadora pelas janelas do prédio. Corri para a saída e constatei que estava trancado na sede. A porta de ferro tinha furos ornamentais e decorativos, por onde vi pessoas correndo escada abaixo, aos gritos. Em seguida as luzes do prédio apagaram. Fui ao telefone e este já estava mudo. Infelizmente o celular e a internet ainda não existiam. Voltei para a porta de ferro e vi bombeiros subindo pelas escadas. Chamei o último deles que me mandou sair correndo, porque havia incêndio no prédio. Avisei que estava trancado. Ele tinha uma marreta na mão e, em segundos, abriu a porta. Desci os seis andares sendo empurrado pelo bombeiro. Cruzei a portaria do prédio em duas passadas e alcancei a rua. Estava salvo.

O incêndio não foi grave. Uma advogada do 12º andar foi almoçar e esqueceu uma vela acessa diante de uma gravura de um santo de quem era devota. Uma janela entreaberta, corrente de ar e as cortinas fizeram o resto.

No dia seguinte, em reunião com a diretoria e conselho, relatei o ocorrido e mostrei os jornais. Alguns riram, outros ficaram espantados. O Abrahão colocou a mão no meu ombro e disse: - Benvindo à vida dos agentes de viagens. Aqui temos sustos e emoções, garantidos, todos os dias. Poucos anos depois, proprietário da minha própria agência, fui aprovado como sócio na ABAVRS.

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