o iate Granma - foto de Pettersen Filho, 1956 |
Reza a lenda que durante a travessia do Granma, barco que, em 1956,
conduziu, do México ao litoral de Cuba, 82 guerrilheiros que iniciariam a grande jornada até a vitória da Revolução em 1959, um deles, à noite, caiu no
mar. Grande discussão se fez a bordo. Alguns opinavam que o desembarque não poderia sofrer
atraso, sob pena de serem apanhados pela repressão. Em nome da causa se impunha
o sacrifício do companheiro e coisa e tal. Fidel se opôs argumentando que a Revolução se faria
para salvar vidas e seria um contrassenso e grave erro ético, abandonar o náufrago
ao infortúnio. A final do processo de discussão o companheiro foi resgatado. Não se tem provas de que a Revolução tenha atrasado seu curso ou que a chuva de balas e o bombardeio que esperaria aquele grupo no desembarque na praia tenha sido causada pelo atraso na busca do companheiro naufragado, mas o gesto em si impõe, historicamente, a máxima do processo revolucionário socialista a que Cuba ainda é o principal estandarte: a solidariedade.
coluna guerrilheira avança sobre Havana, dezembro'1958 |
Aqueles vinte e poucos revolucionários que sobreviveram ao ataque no desembarque conseguiu resistir e sobreviver solidariamente e, vinte e cinco meses depois iniciaria o mais duradouro movimento ideológico-revolucionário da história da humanidade, solidificando a solidariedade como seu principal centro motriz. Os cubanos, neste meio século, exportam a si mesmos e seus ideais de solidariedade pelo mundo, através dos seus médicos e médicas, educadores e educadoras. Cuba mantém o mito da revolução através da solidariedade e da generosidade. Cruzaram o Oceano Atlântico em aviões quadrimotores com 50 anos de uso, sem bancos, às escuras com alimentos, munição e soldados, para ajudar a libertação de países na África como a Guiné-Bissau, Angola e Moçambique. Enviaram ajuda humanitária pelo mundo e até açúcar e remédios para tentar salvar o governo de Allende, no Chile, cercado pela CIA e seus aliados em 1973.
posse do Presidente Lula, em 2003 |
A Revolução Cubana, após meio século ainda é o grande mito das esquerdas no mundo. Depois da autodestruição do império da União Soviética, do desaparecimento de caricatos regimes na Romênia de Ceaussescu e de Ever Roxha na Albânia, bem como do surgimento da salada ideológica chinesa, Cuba mantém-se firme como único exemplar legitimo da Revolução Socialista, tendo como princípio, meio e fim a Solidariedade.
No Brasil, foram desembarcados milhares de médicos cubanos nos últimos ano,s solidários com nossas necessidades de profissionais de ponta na saúde. Um gesto generoso, solidário e sobretudo emblemático, uma vez que aqui a esquerda inicia uma tomada do poder através do voto, repetindo Allende, 40 anos atrás, e consolida-se sob a égide sagrada da... solidariedade. Nunca os brasileiros foram tão felizes. Nunca amaram tanto. O Brasil também passou a exportar a solidariedade como herança mágica do DNA da felicidade, levando recursos - dinheiro, estradas, remédios, futebol - para o Haiti, para os pobres da África e da Ásia. Protegeu jovens governos populares na América do Sul e Central, consolidando a solidariedade como símbolo, mas também construindo-a como a grande metáfora da esquerda brasileira.
Desde os anos 80, quando o Brasil retomou seu caminho democrático, a esquerda - de forma competente, sustenta seu crescimento sob o manto sagrado da solidariedade como principal fundamento ideológico. Não tratar as diferenças conforme suas particularidades é algo tão exótico quanto ser contra o sistema de cotas. Ser contra a reforma agrária é algo tão abominável quanto ser contra a copa do mundo. Solidariedade não é óbulo, caridade, mas sim um direito e representa o equilíbrio. A receita foi adequada e encaixou-se como uma luva pois, enquanto a esquerda no mundo estava na encruzilhada entre a decadência e a reconstrução, desabando com o muro de Berlim, aqui foi possível recriar o socialismo tropical, fundindo-o com o DNA da solidariedade, excelente modelo de exportação cubano - o contraponto ao individualismo, à ganância e à competição, propostas pela direita como solução para os males do mundo, agora numa roupagem exclusiva, grife modelo século XXI - o neoliberalismo,
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Karl Marx |
No entanto, os ciclos da história não se esgotam por acaso, mas pela ação humana, algo confirmado por Marx. Enquanto a nova tese e sua antítese não dão lugar a uma nova síntese, nos cabe entender os processos e seus escaninhos. Eu prefiro analisar as pontas soltas. Uma ponta solta nos cadarços do sapato podem derrubar o caminhante. E uma bela ponta solta é esta Grande Metáfora que desafia a gênese da esquerda socialista. Tenho observado como cresceram os partidos de esquerda quando no poder e analiso para onde vão e o que acontece com os antigos militantes que carregavam bandeiras nos anos 70 e 80, com seus olhares sempre direcionados ao horizonte, como que enxergando o futuro, e que pregavam a solidariedade como passaporte da felicidade.
Fico triste em notar um homem do porte do José Genuíno iniciar um processo de desaparecimento. Começo a notar que ninguém mais fala do Celso Daniel, do Betinho, do Henfil, que doou aquela simpática avezinha negra - a Graúna, para o Partido dos Trabalhadores utilizar como símbolo. Ora, a Graúna é um dos símbolos da solidariedade do nordestino. Comecei a observar que os seres humanos vão sumindo substituídos por outros mais jovens munidos de IPAD, IPHONE, GPS, multilíngues em ternos bem cortados, numa receita parecida com a de seus adversários neoliberais onde o velho, o antigo, não tem valor de mercado. Só que indo ao fundo, notei que estes esquecidos também esqueceram de alguém pelo caminho. Enormes grupos de militantes que correram riscos e conseguiram escapar dos tanques verde-oliva agora são patrolados por modernos rolos-compressores que esmagam e trituram gente e ideias. Alguns caras são simplesmente abandonados, largados no caminho para morrer. Na verdade a nomenklatura sempre gerenciou os processos - sejam eles planos de desenvolvimento, de ataque armado a um objetivo militar ou de aproveitamento de seres humanos. Como soldados da infantaria, descartáveis pelos comandantes, hordas de militantes se lançam em ruas, vilas ou no campo. Correm riscos, lutam, brigam e até roubam... buscam soluções possíveis e impossíveis para traduzir ideias, para materializar sonhos e - um dia, na conquista do poder, simplesmente são esquecidos, abandonados.
Será que alguém lembra dos nomes dos guerrilheiros que expropriaram o cofre do Ademar de Barros? Dos que foram torturados e assassinados por conta daquela ação armada? Alguém lembra dos doadores de campanha, ao menos desde 1989? Dos militantes que venderam carros e imóveis da família para ajudar a pagar campanhas? Por outro lado tem alguns vetustos cidadãos circulando por aí com significativas aposentadorias de deputado ou governador após trabalhar (?) quatro anos... Como o viajante
diante da esfinge, ao ingressar no mundo da política tradicional o
militante se depara com a pergunta: - Tu me decifra ou eu te devoro! Não
tem terceira opção. Ou ele se adapta como a água no vaso, ou ele será esquecido depois que não der mais caldo o suficiente.
Soube de velhos e doentes militantes quebrados depois de tanto ajudar a pagar campanhas e vi governador passar por um deles fingindo que não o conhece, sem coragem de fitar seus olhos. Sei de deputados que nunca tem tempo para atender cabos eleitorais, e de vereadores que até mudam o número do celular. E vi gabinetes e repartições abarrotados de cc's, puxa-sacos e amantes de aluguel, que nunca conseguiram passar do primeiro parágrafo do programa do partido. Dirigentes de estatais nomeados "por curriculum" que na realidade são ladrões e vigaristas, mestres em repartir o butim com seus amos, outros tipos de pilantras que não conseguem manter seus pintos dentro das calças.
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Gulags: campos de reeducação na antiga URSS |
Conheci gente que tem gavetas cheias de cheques sem fundo de uns políticos importantes que cagam regras de bom comportamento por aí. Gostaria de ver estes cheques saírem das gavetas e irem parar nos cartórios de protesto e nos jornais. Stalin, durante os anos de seu reinado autoritário resolveu o seu problema com os companheiros e colaboradores enviando-os para os Gulags e tirando-os até dos retratos e dos livros de história. No neosocialismo pregado pela nova esquerda, não há lugar para a solidariedade. Este pessoal sem alma, simplesmente deixa seus antigos companheiros pelo caminho, para morrerem de fome e doentes. E esta gente perversa tem tanta presunção, que não consegue lembrar que uma ponta solta nos cadarços do sapato podem derrubar o caminhante.
Diante da Grande Metáfora proporcionada pela busca do náufrago do Granma, o dilema das esquerdas está em descobrir se a solidariedade pregada é a mesma aplicada. Ou seja, qual a síntese entre esta tese e sua antítese, dentro da mesma gênese. O pensador poderá até descobrir, na pesquisa, se a sua alma não foi abandonada ou negociada com alguém.
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